Barriga solidária: conheça a história da família de Criciúma que usou método para realizar sonho da maternidade

barriga de alugue - clinica de reproducao humana florianópolis Dra Mila cerqueira

Nivalda é mãe de Gleice e ajudou a filha a realizar o sonho da maternidade, ao gerar Arthur. Número de casos cresce no Brasil e a discussão ganha exposição com a novela “Amor de mãe”, da TV Globo.

Quatro filhos, três gestações e uma história que parece de novela. Nivalda Maria Candioto, 61 anos, foi informada que não poderia engravidar, pois tinha o útero infantil. Ela adotou uma menina, e poucas semanas depois, descobriu que estava grávida. O mesmo aconteceu com Vitória, personagem de Taís Araújo em “Amor de Mãe”, novela das 21h no ar na TV Globo, mas as coincidências não param por aí. Assim como Thelma (personagem interpretada por Adriana Esteves), Nivalda também gestou um dos netos. Ponto de virada na trama para roteirista nenhum botar defeito.

Na década de 1980, fertilização in vitro ainda era um assunto restrito à pesquisa internacional, e Nivalda recorreu à adoção para realizar o desejo de ser mãe. Daiane é de janeiro de 1983, e em outubro, a vendedora deu à luz Gleice. Três anos depois, nasceu Laíze, e a vendedora fez ligadura de trompas, satisfeita com o trio de meninas que alegrava a casa.

Foi na adolescência, em uma consulta de rotina, que a filha do meio descobriu que não tinha útero. Nivalda estava junto, e quando ouviu sobre a possibilidade da barriga solidária, não pensou duas vezes. Disse que se tivesse saúde, a filha poderia contar com ela. E assim foi, alguns anos depois. Antes, Gleice, que é assistente social, adotou Júlia, hoje com nove anos.

Ela queria me ver feliz, é um amor de mãe, não se pode medir. Ela pode fazer o que estava ao alcance para me ver feliz – resume Gleice.

Em 2012, a ideia da barriga solidária ressurgiu com força, e mãe e filha iniciaram o tratamento hormonal. Em 2014, o óvulo de Gleice foi fertilizado com material genético do marido dela, e implantado em Nivalda, que na época estava com 56 anos.

A tentativa deu certo, e 38 semanas depois, mais precisamente em 5 de fevereiro de 2015, Arthur nasceu de cesariana, em Criciúma, no Sul do Estado.

– Muita gente me pergunta como eu podia, depois da gravidez, entregar ele assim pra minha filha. Mas era tudo que eu mais queria, dar esse presente pra ela – recorda Nivalda.

O casal e a filha moravam no interior de São Paulo, e com menos de um mês de vida, Arthur foi embora com eles. A avó Nivalda ia visitar sempre que possível, e o menino cresceu sabendo da história da família, sem segredos. Ele tem o nome da mãe e do pai biológicos na certidão de nascimento, embora a família tenha passado por contratempos para conseguir o registro.

– Valeu a pena, faria tudo de novo. Penso e tenho certeza, o tempo todo, que essa foi a melhor coisa que fiz na minha vida. Não tem prêmio, não tem loteria, melhor do que a nossa história – celebra a avó.

Gleice voltou a viver em Criciúma há cerca de dois anos, e de lá para cá, a relação de amor, cumplicidade e carinho cresce mais a cada dia, pertinho dos seus. Além de Júlia e Arthur, Nivalda também é avó de Augusto e está à espera do Teo, que nasce em setembro, filhos de Laíze. Luíza, filha de Daiane, completa a turma.

Enquanto revive um pouco da própria história como telespectadora da novela, Nivalda se emociona:
– Amor de Mãe (a novela) está sendo a minha história se repetindo. O casal ficando feliz, a nora acariciando a barriga, o filho também, algo que a mãe vai fazer por eles. A maior felicidade do mundo, parece que sou eu ali, é muito bom – relembra.

Das novelas para a vida real

O assunto mudou de nome, mas segue nos holofotes. Em 1990, a expressão barriga de aluguel foi trazida para o dia a dia dos brasileiros com a novela homônima sobre a trama de duas mães envoltas em dilemas morais, científicos e éticos em relação a uma criança.

Na época, a jogadora de vôlei Ana (interpretada por Cassia Kiss) e o marido Zeca (Victor Fasano) queriam ter um filho, mas ela não conseguia reter o feto. Entrou em cena Clara (Cláudia Abreu), a qual decide alugar a barriga. Agora é a vez de outra novela, “Amor de Mãe”, retomar o assunto com o nome mais nobre, o de barriga solidária. A tentativa de Thelma (Adriana Esteves) servir como barriga solidária para Danilo (Chay Suede) e Camila (Jéssica Ellen) deu certo. Mas, isso é comum no Brasil?

Bem mais do que se pensa. Cerca de 83 mil bebês brasileiros nasceram por meio de tratamentos de reprodução assistida nos últimos 25 anos. O número coloca o Brasil como líder do ranking latino-americano dos países que mais fazem fertilização in vitro, inseminação artificial e transferência de embriões. Os dados são da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida.

De acordo com o levantamento, a fertilização in vitro e a inseminação artificial correspondem a mais da metade (53%) dos procedimentos feitos pelos pacientes, enquanto a transferência de embriões congelados corresponde a 32%, o que aumenta a taxa de gestação cumulativa por ciclo de tratamento.

Vários fatores podem interferir no êxito do tratamento, entre eles a idade da mulher, relacionada diretamente à quantidade e à qualidade de óvulos. A pesquisa mostra ainda uma mudança no perfil dos pacientes. No ano 2000, mulheres com idade abaixo de 34 anos eram responsáveis pela metade dos tratamentos. Em 2016, o percentual caiu para 28%. Nesse mesmo período, a demanda pelo tratamento duplicou entre as mulheres acima de 40 anos. Os números refletem nova tendência entre aquelas que querem evitar obstáculos à permanência no mercado de trabalho: postergar os tratamentos, deixando para engravidar mais tarde. Uma realidade mundial, não só na América Latina.

Perfil das catarinenses que recorrem ao tratamento

A ginecologista Mila Harada Ribeiro Cerqueira faz parte da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. Com consultório em Florianópolis, a médica explica que nos últimos anos há um significativo aumento em Santa Catarina por tratamento. Na clínica onde trabalha destaca-se o perfil de mulheres com idade acima de 35 anos, as quais normalmente adiaram o momento da maternidade privilegiando a vida profissional. Além do grupo de mulheres em idades variáveis portadoras de endometriose.

Ela explica ainda a presença dos novos modelos familiares, como casais homoafetivos de mulheres, seguido de mulheres solteiras que desejam produção independente.

Ter filhos constitui um projeto de vida para a maioria dos casais e quando isso não acontece mesmo com o tratamento, o sofrimento, a frustração e o desgaste emocional são enormes. Lidar com a expectativa da mulher ou do casal é muito desgastante para o profissional – diz a médica.

Por isso, ela explica que o profissional deve sempre enfatizar as probabilidades de sucesso e insucesso do tratamento e oferecer apoio psicológico e de toda equipe diante de resultados negativos. Apesar de as técnicas já serem utilizadas há décadas, o número de clínicas brasileiras de reprodução assistida ainda é pequeno quando comparado a outros países, 156.

Para a médica, isso tem a ver com o alto custo para implantar e manter um laboratório de fertilização, dependente de tecnologia avançada, materiais importados. Além de exigir profissionais altamente qualificados. Isso acarreta o sério problema da procura por casais com dificuldades financeiras.

O acesso a serviços gratuitos é difícil, quase sempre com longas filas de espera e raros serviços disponíveis.

A médica sugere que pessoas que busquem a reprodução assistida procurem clínicas que apresentem registro na Anvisa ou que tenham certificação da Rede Latino Americana (RedLara).

A espera pela chegada de Alice

A advogada Marta*, 38 anos, terminou o doutorado na área ambiental, fez concurso público e concluiu: chegava a hora de ser mãe. Quase três anos depois de iniciar o tratamento em uma clínica especializada, já está com o quartinho pronto para receber Alice, que deve transformar a rotina dela e do marido, também advogado, no melhor março das vidas.

– Meu marido é infértil. Conversamos muito e pensamos numa adoção, mas entendemos que a reprodução assistida era um caminho seguro para termos um filho biológico, já que é gerado na minha barriga – conta ela.
A advogada conta que adiou a gravidez por achar que devia priorizar a carreira profissional. Mas admite que, nos últimos anos, sentiu uma “certa pressão das futuras vovós”:

– Acho que a possibilidade de adiar já é um ganho para a mulher, mas também entendo que a sociedade cobra da gente pela maternidade – reconhece Marta.

Sobre o tratamento, ainda caro para muitas famílias que se utilizam da reprodução assistida, ela acredita que quanto mais investimento em tecnologia mais os custos serão reduzidos. Sobre a denominação – barriga solidária em vez de barriga de aluguel –, a advogada considera importante como perda do caráter mercantilista:

– Eu acharia lindo se toda mulher pudesse gerar seus filhos, mas nem sempre isso é possível, até por doenças. Mas quem se coloca à disposição do sonho do outro também é nobre, como do doador que permitirá meu marido ser pai – pontua ela.

*Marta é um nome fictício. A advogada aceitou conceder entrevista à reportagem, mas pediu para não ser identificada.

Casos de fertilização in vitro no país cresceram 18,7%

Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostram que o número de fertilizações por meio de inseminação artificial cresce no Brasil. De acordo com o 12º Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), em 2018 foram feitos 43.098 ciclos de fertilização in vitro, contra 36.307 em 2017. A comparação entre os dois anos resultou em um crescimento de 18,7% na quantidade de procedimentos.

O ciclo de fertilização in vitro ocorre quando a mulher é submetida à produção (estímulo ovariano) e retirada de oócitos (células reprodutivas femininas) para a execução de reprodução humana assistida. O documento aponta também que, em 2018, foram congelados 88.776 embriões para uso em técnicas de reprodução humana assistida, 13,5% a mais do que em 2017 (78.216).

Os riscos da burocracia em outros países

Assim como a tecnologia a favor da reprodução assistida está em constante atualização, a legislação que trata da gravidez por substituição. Há, no entanto, caos em que a justiça precisa ser acionada. Foi o que aconteceu com dois homens brasileiros, casados em janeiro de 2016 e que desde 2012 mantinham união estável. Em 2016 eles passaram por um aperto. O casal buscou barriga de aluguel no México. Mas inicialmente não conseguiu registrar como filhos os dois gêmeos nascidos naquele país. As crianças embarcaram para o Brasil apenas com o nome de um deles, o pai biológico.

Ocorre que o consulado brasileiro da Cidade do México se recusou a registrar as crianças, apesar de a legislação brasileira assegurar já naquela época. O Itamaraty alegou que – de acordo com o manual e a Convenção de Viena –, ao gerar a certidão de nascimento, o consulado deve se pautar pelo que prevê a lei local – no caso, a mexicana. O casal constituiu uma advogada e três meses depois o reconhecimento de paternidade dos dois foi feita pela Justiça do Rio de Janeiro. Enquanto isso não ocorreu, um deles convivia com a insegurança de andar com os filhos na rua numa eventual blitz no trânsito, por exemplo.

Jurisprudência no Tribunal de Justiça de SC

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) já se posicionou sobre o tema. Em 2014, um casal homoafetivo em união estável desde 2011 obteve autorização judicial para registrar o filho apenas com os nomes dos pais. A criança foi resultado de inseminação artificial, e a irmã de um dos companheiros cedeu o útero e o óvulo para a gestação. A mulher abriu mão do poder familiar para atender ao pedido do irmão. Na ocasião, o juiz Luiz Cláudio Broering considerou que, no caso, houve gestação por substituição, o que não devia ser confundido com “barriga de aluguel”.

O magistrado esclareceu questionamento do Ministério Público, que entendeu tratar-se de adoção unilateral. O juiz apontou que a Resolução n. 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina, aprova a cessão temporária do útero, sem fins lucrativos, desde que a cedente seja parente consanguínea de um dos parceiros, até o quarto grau. Considerou, ainda, que foi cumprida a exigência de assinatura de termo de consentimento entre os envolvidos, além de contrato estabelecendo claramente a questão da filiação da criança e a garantia de seu registro civil pelo casal.

Para Broering, a doadora deixou claro que apenas quis auxiliar o irmão a realizar o sonho da paternidade, e que em nenhum momento teve dúvida do papel no projeto parental dos autores.

Para entender

– A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera infértil um casal que mantém relações sexuais sem métodos contraceptivos durante 12 meses sem engravidar.

– Segundo a OMS, há mais de 50 milhões de pessoas no mundo nessa condição, sendo que 8 milhões de brasileiros podem ser inférteis.

– O Conselho Federal de Medicina (CFM) estipula 50 anos como a idade limite para que uma mulher seja submetida a técnicas de reprodução assistida.

– A gestação de substituição é indicada apenas para mulheres que nasceram sem útero ou tiveram que tirar o órgão cirurgicamente devido a doenças. Pode ser uma opção para mulheres com problema médico que impeça ou contraindique a gestação.

– No Brasil, a reprodução assistida é regida pela Resolução n° 2.013/13, do CFM, pelo Código de Ética Médica, promulgado pelo mesmo Conselho, e pela Lei n° 11.105/05, conhecida como Lei de Biossegurança.

– De acordo com a resolução, as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros, com parentesco de até quarto grau. Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

– Por não haver legislação específica, os tribunais baseiam-se atualmente na resolução ética do CFM, que indica punição caso os médicos não sigam as instruções previstas.

Matéria publicada originalmente NSTotal.com.br .

 

 

 

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